quarta-feira, 28 de maio de 2014

A pátria sem chuteiras

1986, Brasil no México. Telê no comando, Seleção Brasileira favoritíssima. Zico, Sócrates, Falcão e companhia. Não poderia dar errado. País inteiro enfeitado de verde e amarelo. Aquele sentimento tradicional em que o Brasil entrava em campo com a seleção. Brasil e França, quartas-de-final. Aniversário do meu irmão. Casa enfeitada para a festa e para a comemoração da ida para as semi-finais. Não poderia dar errado!
Mas deu... Michel Platini comandou o time francês e impediu a plena alegria na hora dos parabéns. A casa e o bolo em verde-amarelo, meu irmão vestido com o uniforme da seleção poderiam ser apenas uma imagem melancólica e triste da derrota, mas representava um sentimento nacional de que, mesmo tendo sido derrotados, acreditávamos na Seleção e o sonho do tetra tinha sido apenas adiado.
Agora a Copa é em casa e o país vive um momento de extrema apatia com o mundial. Não existem carros com a bandeira do Brasil, nem ruas pintadas, nem bandeirolas, nem nada. O povo anda tão desinteressado com a Copa que a escalação do Luverdense causa mais frisson que a da Seleção. A alegria foi convertida em indignação. Existe quase que um sentimento de vergonha geral por conta das obras inacabadas e uma revolta ostensiva com os gastos com as arenas por todo o país. Cartazes de apoio à seleção deram lugar aos que dizem que não vai ter Copa.
Este cenário inimaginável faz pensar no que escreveria Nelson Rodrigues. O Brasil não calçou as chuteiras?
Quando houve a ampla comemoração com o anúncio do Brasil-sede, era conhecida a necessidade de adaptações, havia a promessa de uma significativa melhoria em nossa cidade. Rede urbana, hoteleira, turística. O tal “legado” da Copa. O povo, no início, até entendeu os buracos, desvios e congestionamentos. Mas o tempo foi passando e a paciência acabando.
Obras paralisadas por ações judiciais, uso político do Judiciário para desgastar o Executivo, erros de execução pelos empreiteiros, problemas sociais com desapropriações, atrasos generalizados, valores estratosféricos, chuvas fora de hora, greves, manifestações. Parece que tudo vem conspirando contra o brilho que poderia ter o mundial em país que se intitula “do futebol”.
Estamos a uns dias do início da Copa e já não dá para fazer muita coisa, salvo torcer. Se não pela seleção, ao menos para que a vergonha seja pequena.
Se lá em 1986 mesmo perdendo saímos do mundial de cabeça erguida (oh, Zico... aquele pênalti deve te causar pesadelos até hoje!), desta vez estamos entrado de cabeça baixa. Sem bandeiras agitando nos carros, sem faixas nas ruas. Se em 1986 o Joel Bats fez ficar preso o grito de gol (Zico, juro, não é perseguição), hoje gritam nas ruas que não querem gol.
E se alguém disser que as dezenas (que eram centenas e ano passado chegaram aos milhares) de manifestantes não representam o sentimento de toda a população, que nos digam, então, onde está o vírus da Copa, que este ano não infectou ninguém. Talvez as obras tenham sido uma espécie de vacina, que nos fez criar ao longo dos meses uma certa resistência ao mundial. O desgosto cotidiano foi minando a alegria de ver a Seleção Canarinho.
Mas, mesmo sem a alegoria tradicional pelas cidades, as arenas estarão lotadas quando a bola rolar. Talvez estejam faltando uns bons gols para nos levantar a cabeça, soltar o grito e, finalmente, voltarmos a ser a torcida brasileira.